segunda-feira, 14 de abril de 2008

A palavra é de prata, o silêncio é de ouro

Fascina-me o facto de existirem, na nossa vida, alturas em que caminhos semelhantes se cruzam com os nossos.
A infertilidade pairou na minha vida durante dez anos. Foram dez anos de sonho, ilusão, desilusão, tristeza, esperança, fé e muita dor. Ser mãe era um objectivo de longa data e foi o sonho que mais demorei a realizar na minha vida. Primeiro foi o aborto espontâneo, mais tarde uma vida que acabou subitamente às 23 semanas de gestação, depois a longa espera por uma réstia de esperança, por um desejo que se iria realizar finalmente há dezasseis meses.
Nestes dez anos, muita coisa mudou. Quando tive de enfrentar este problema, eu não dispunha do recurso à Internet, nem tão-pouco conhecia alguém que tivesse passado por isto. E todas a minhas amigas casaram depois de mim e têm agora filhos pré-adolescentes. Depressa tive de lidar com as perguntas intrometidas e inconvenientes: o casual “então quando é que mandam vir o bebé?”, que se me tornou odioso e incómodo. O sorriso falso, a disfarçar uma dor inconfessável e um desejo calado. Um grito no silêncio da minha dor, que me enchia a garganta e que parecia explodir, mas que eu tinha de segurar, dizendo que ainda era cedo, que qualquer dia se veria. É que, na infertilidade, além de termos de lidar com uma incapacidade do nosso próprio corpo, com a sensação de injustiça, impotência, revolta, o sentimento de diferença perante todos os outros casais, tem de se lidar com a estupidez alheia, com o fingir que está tudo bem quando cá dentro só vive o vazio de uma vida que anseia por outra que não aparece. Por lição de vida própria, não faço este ou outro tipo de perguntas a ninguém: porque há muita coisa na vida (filhos, casamento, relações, …) que depende de factores alheios a nós e que causam a diferença. E que é que quer ser diferente de forma imposta? Sou muito mais de ouvir, de contar, do que de perguntar. Não tenho de saber da vida de ninguém para ser mais ou menos amiga.
Depressa aprendi que o silêncio era o meu melhor aliado. Se contava o problema, olhavam-me com ar de pena. Tive amigas que não me contaram quando estavam grávidas, por medo da minha reacção. Houve pessoas de quem soube da gravidez por terceiros. E juro que não ficava com raiva, ficava feliz, imensamente feliz por sentir que alguém, pelo menos, iria alcançar uma coisa que eu desejava. Mas esta pena, este medo incompreensível, rapidamente me remeteram ao silêncio. E não falando, a pessoa cala o sofrimento, fecha-se ainda mais no vazio do seu desejo e no silêncio da sua dor. Sentia-me incompreendida. Quando perdi a bebé, uma familiar do meu marido disse-me, à laia de consolo, que eu iria ter outros filhos. Como se a morte de um, pudesse ser substituída por outro. Ainda hoje lhe guardo mágoa. Como pôde dizer-me aquilo? Por que não ficou calada? Mas, neste percurso de dor, houve também raras pessoas que se revelaram pela sua imensa generosidade. A minha S., por exemplo. Era uma colega de trabalho, como tantas outras. Tinha sido mãe há meses. E quando me telefona a saber como estava a decorrer a gravidez, tinha eu perdido a bebé há uma semana, ela chorou. Não éramos minimamente ligadas, pelo menos eu não era e ela chorou, quando tantos e tantos amigos se remeteram ao silêncio, fingindo que nada se passava. Também reconheço a dificuldade da reacção…afinal o que se diz numa hora destas? Escusado será dizer que ela é hoje uma das minhas mais preciosas amigas. Com esta eu sei que posso contar!
O silêncio. Os anos a passar, um desejo ansiado, calado, escondido. A dor física dos exames, dos tratamentos, o medo de falhar, o medo do desconhecido. A minha única ajuda foi um livrinho sobre infertilidade que ainda hoje guardo. Esse livro era o meu apoio, porque explicava os procedimentos, os problemas, os tratamentos… A dor psicológica da espera, a felicidade de não termos nenhum problema que impedisse uma gravidez, mas, ao mesmo tempo, a incompreensão de não sabermos identificar a causa de não ficar grávida.
A par disto, a recordação terrível da perda. Os três dias em trabalho de parto, sem poder ter visitas, numa sala onde ouvia constantemente nascer bebés atrás de bebés. E eu sabia que saía de lá com o colo vazio, porque sabia de antemão que os bebés não sobrevivem com aquele tempo de gestação. Ainda hoje os meus olham se inundam de lágrimas só de me lembrar. Naqueles dias deixei de acreditar que existia Deus, revoltei-me muito. Ironicamente, junto a mim, estava uma rapariga, com as mesmas semanas de gravidez, que tinha provocado um aborto. Que injustiça, pensava. Por mais que passe nesta vida, apesar de ter alcançado o meu sonho, nunca, nunca, nunca mais me posso esquecer destes maus momentos. Por mais que as minhas palavras me doam, elas são insuficientes para exprimir a violência destes momentos e o quanto me marcaram e fragilizaram.
Para ajudar, a minha mana estava grávida, de mais duas semanas. E eu tive de ver a barriga dela gigante, a crescer, e ter de lidar com a minha, vazia de sonhos, oca de tudo. Caí em depressão. Reservei-me ainda mais. Tanto que só muito poucas pessoas acompanharam os tratamentos que fiz e a maior parte das pessoas que me rodeiam só souberam da minha gravidez, quando estava de doze semanas.
Apesar de tudo isto, consegui. Não desisto das coisas que quero na minha vida. E hoje já não me calo mais, tenho a absoluta necessidade de dizer, de contar que isto me aconteceu. Porque a infertilidade não é tão rara quanto se pensa. Porque cada uma de vós que me lê conhece, se calhar, alguém que sofre com este problema, e não sabe que há uma vizinha, uma amiga, uma colega, um familiar, bem próximo, que cala a sua dor como eu calei a minha. E num espaço de tempo curto, descobri no emprego pessoas que passaram por isto e hoje têm filhos. Uma conhecida do ginásio está em tratamentos. A minha querida C. lida agora com o sabor amargo da primeira desilusão, após o primeiro tratamento.
Hoje almoçava no Centro Comercial, quando ouvi o meu nome. Era uma colega de há quatro anos. Casada há muito tempo, sem filhos. Desconfiava. Disse-me que eu estava diferente. Reconheci que estava mais gorda, mas tinha sido mamã, reforçando, o finalmente. Ela percebeu. Perguntou se tinha havido problemas. Contei-lhe tudo, entre dentadas no hamburguer. Confessou-se. Está a tentar, já fez duas IAC no privado. Contei pormenores, dei referências, ofereci apoio, dei conselhos. Que seguisse a sua vida sem fazer do filho o único sonho. Que se resguardasse, porque o lidar com uma desilusão é muito mais difícil quando temos de nos fazer de fortes, perante os outros. E que acreditasse que era possível. Estas foram as minhas premissas para o sucesso. E é estranho como me sinto feliz por ter ajudado. Ela premiou-me com o facto de me ter dito que era a primeira vez que revelava tantos pormenores sobre a sua situação, vi que a tinha ajudado porque, nem que fosse por breves momentos, achou em mim uma igual na sua (nossa) diferença. Porque houve uma partilha, um reconhecimento, uma compreensão da dor que cada uma de nós passou.
Hoje tenho muita vontade de não me calar. Falar destas coisas, desmistificá-las, ver que não somos os únicos a sofrer, que somos milhares de casais e que há uma taxa de sucesso e há muita vitória também. É preciso que se saiba. E cada vez que recordo das paredes do serviço de infertilidade, cheias de fotografias de recém-nascidos e de cartas de agradecimento, lembro-me que todos os dias ali se fazem milagres da ciência, ali é a verdadeira fábrica da felicidade. E sempre acreditei que um dia seria eu a escrever aquelas palavras. Tenho vontade de entrar naquele piso, abrir as pesadas portas e gritar pelo corredor fora, para todos os casais desalentados que lá estão, que aquele um dia foi o meu caminho, a minha tortura, a minha fé, o meu acreditar. E que consegui.

Na vida da minha querida C., desejo que os dias que faltam sejam muito poucos. Quero muito que as amigas e conhecidas e desconhecidas deste mundo sejam bafejadas pelo macio e suave toque mágico da maternidade. E um dia também hão-de conseguir!